segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Cor De Vinho

O tempo nem sempre traz as respostas para tudo. Mas, por vezes, a não resposta é a melhor de todas para se receber. O silêncio acarreta em questionamentos e os questionamentos são os motores da história. Da nossa história. História de cada um.
Pegou algumas roupas, seus livros de cabeceira, a grana que havia juntado nesse tempo que trabalhou. Jogou tudo em sua mochila. Dezenove anos de idade trabalhava desde os doze. De uma coisa nunca duvidou, ele sabia como sobreviver. Pensando em sobrevivência, num outro canto, numa mesa de restaurante sob terno e gravata, um jovem homem, encarando uma taça de vinho, sem desviar o olhar, como quem está na beira de um penhasco, decidindo se pula ou não. O conforto da vida que levou até aqui, desfeito pelo incomodo da roupa engravatada. Uma sensação danada de que não é o que se está sendo. Como se fosse muitos, muitas ou melhor como se fosse dois. Binômio, biênio, bicicleta, bíceps, bilateral, bicampeão, bipartido, bissexo, bipolaridade, bis. Duas vezes. Não era questão de ser duas caras, mas de sentir-se dois. Dois. Ser dois numa vida só. Assumiu ser bi. Bissexual. Porém, não bastou. Nele habitavam dois. Ele podia ser bi. E era um bi ser. Isso. Dois seres em um único ser. O complicado era ser dois com um corpo e uma vida só. Gostava de sua barba. Optou por tirar apenas a metade. É que o rosto liso era perfeito para um lado.  Olhou para cama observou aquele vestido. Tomou uma decisão.
Saiu de casa com sua mochila. Ao fechar a porta olhou a última vez pra sala. As fotos na estante levaram-no em uma viagem de sabor nostálgico a sua infância. Deu um sorriso de canto de boca. Refletiu o quanto foi feliz. Feliz quanto esse vinho gelado naquela taça. Talvez não tão gelado, nem menos importante que as coisas que passavam em sua cabeça agora. Por um segundo distraiu-se, perdeu o foco da taça de vinho, viu aquela gente chique, fresquinha, cheia de mesquinharia e que fingia ser feliz e não entendeu porque até então havia vivido nesse mundo de fingimentos. Entretanto sempre esteve claro para ele. Era frágil. Por ser frágil precisou se esconder atrás dessas roupas. Pegou aquele vestido longo, de detalhes indianos, que sempre desejou experimentar. Havia um tempo que comprara. A coragem e o preconceito que sua outra metade tinha para com ele é que não deixara nem testar. Continuou a observar em suas mãos. Não sabia explicar o que sentia.
Essa é uma história de três ou de um, uns. Porém é uma história só. Nela está contida um tanto incontável de pessoas. Sim, é um tanto confusa. História confusa de pessoas confusas que levam uma vida confusa no meio dessa confusão que é o mundo. Confusão que se arma todos os dias e que nem sempre chega a alguma conclusão. É que eu, enquanto autor, um tanto quanto exageradamente confuso, ainda não refleti sobre os próximos parágrafos e nem mesmo sobre o fim. Achei esteticamente bonito e de uma precaução ética ressaltar que essa confusão pode ficar mais confusa, não chegando a solução de problemas, mas a criação de novos. Questionamentos nem sempre podem ser resolvidos. Refleti-los nunca é de menos. Nunca. Nunca deixe de se questionar a cerca dos questionamentos. Quem sabe um dia as respostas cheguem ou percebamos tudo diferente.
Ganhou a rua, aqueles pés revestidos de um all star azul marinho envelhecido que o dava um tom acinzentado ressaltava sua irreverência salutar juvenil. Deixou os cigarros para traz. Não precisava mais carregar esse vício. Já havia peso demais nas suas costas. E a estrada que ia dar aonde ele quer chegar, mesmo sem saber que lugar é, poderia ser longa. Seguiu peregrino de si. Virou a taça de vinho. Vale ressaltar que essa taça é a metáfora da vida. E se nela continha vinho, só poderia ser vinho seco e um tanto amargo difícil de tragar, sorver... Foi essa a sensação que sentiu. No meio de tantas reflexões e amarguras sentiu-se Sócrates tomando cicuta. Lembrar-se de tal comparação fez surgir um riso entre tantas lágrimas. Afinal Sócrates entrou para história, mesmo alguns desconfiando de sua real existência. E foi obrigado a tomar o veneno. Já ele não, escolheu aquele vinho ruim pelo fato de ser o mais caro do menu, e ainda vai pagar. A pior parte para ele é saber que após o vinho continuará vivo e terá uma grande dor de cabeça. Mas assim como duvidam da existência daquele grande filosofo, olhando seu reflexo idiota embriagado na taça de cristal questionou-se se de fato teria ele vivido até ali. Vestiu-se de coragem. Coragem um tanto simbólica e bem estampada com arte indiana dando forma a silhueta um tanto quadrada que lhe passou despercebido. Pois não se tratava de vestir-se bem. Era questão de sentir-se inteiro por alguns instantes em sua outra parte. Dançou livremente a dança da vida esqueceu seus aspectos físicos como a meia barba que ainda restava, sua genitália e tudo que usavam para lhe prender a ser um, a ser um homem. A sua outra metade foi inteiramente completa e feliz. Entrou em comunhão com o universo, dançou entre os planetas, se enfeitou de Saturno e reverenciou Vênus, que lhe acolheu perfeitamente bem. Era uma das suas filhas.
Era um peregrino desses moderninhos, levava suas tecnologias na mochila, alguns cartões de crédito e não pretendia contato com a natureza e nem escalar montanhas verdes para ver o horizonte. Entendia-se parte daquele mundo caótico e queria encará-lo, indagá-lo, compreender sua lógica desigual, sufocante, queria entender a falta de contato entre as pessoas, aonde foi parar a tal da sensibilidade... Descobriu que seu rumo era o cume mais alto daquela cidade. Depois de encontrar pegou o elevador e seguiu até o topo daquela montanha acinzentada insensível quadrada de concreto sem vida. Não pôde deixar de observar que o interior daquele prédio e do como as pessoas do lado de dentro dele tinham o mesmo aspecto acinzentado insensível quadrado de concreto sem vida como o exterior dessa montanha. Foi como adentrar no mais intimo daqueles seres em segundos. Sentiu-se sufocado. O que era comum para ele nesses tempos questionamentos, mas com uma diferença estava sufocando por ele e pelo outros. O coração batia mais forte a cada andar. Chegando ao topo as dificuldades na respiração afetaram o seu caminhar. Ainda assim, mesmo cambaleando insistiu em chegar até a beira daquele espaço. Observou o horizonte cheio de montanhas acinzentadas insensíveis quadradas de concreto sem vida e compreendeu o sentido da vida. Quis compartilhar...
Era um covarde. Sabia disso há tempos. Na alfabetização uma garotinha de cachinhos dourados e olhos azuis cintilantes, que parecia um anjo tomou o João Bobo das suas mãos e disse: “Sabe qual a diferença entre você e esse boneco? Nenhuma. Os dois são uns bobões sem graça.” Reagiu. Nem sabia o que ela quisera com aquilo. Voou para cima do anjinho da sala com uma tesoura verde, sua cor favorita, sem pontas e com um pedaço de esparadrapo branco onde continha seu nome, sua turma escritos de forma minúscula quase ilegível com uma caneta esferográfica dessas de ponta fina na cor azul e cortou todos aqueles cachinhos. Os dois tiveram que fazer terapia. A garotinha pelo fato dos coleguinhas passarem a chama-la de Barbie Careca. Ele. A coordenadora julgou sua atitude preocupante. Disse que ele teve uma conduta violenta que precisava de tratamento. Quando na verdade achou seu comportamento psicopático, típico de seriais killers e se benzeu para espantar os maus pensamentos. Mas isso não tem nada haver com aquilo. Eram só lembranças. Talvez explicasse o fato dele nunca mais ter reagido à vida. Por fim, virou a última taça de vinho. Pagou a conta. Saiu daquele restaurante. Optou por caminhar um pouco mais antes de ir para casa.
Descobriu-se mulher. MULHER. Isso mulher. Agora compreendera. Embora o corpo fosse biologicamente de um homem, identificava-se, reconhecia-se mulher. Não tratava-se de uma aberração, não se percebia assim. Agora sentiu uma felicidade sem tamanho. Entendera-se finalmente. Retirou a outra parte da barba. Passou lápis no olho. Delineou. Pó. Batom Vult num tom avermelhado. Não tinha habilidades com maquiagem. Detestou. Lavou o rosto. Veio uma interrogação, o que de fato significava sentir-se mulher e sê-la?
Veio uma tontura forte. Sufocou de vez. Caiu do alto da montanha acinzentada insensível quadrada de concreto sem vida. Num vôo monumental. Fotos, memórias, pessoas, questionamentos, sacanagens, bebidas, drogas e o sentido da vida que acabara de encontrar passou em forma de flash por sua cabeça que foi a primeira a tocar no chão. Tomou um susto. Sangue para todo lado. Ficou atônito. Atordoado. Pasmo. A vida pode ser cruel com as pessoas. E as pessoas cruéis umas com as outras e as vezes consigo mesmas. Mas quem era ele para julgar. Nunca se jogou por ser covarde. Pegou um táxi rumo a sua casa. De fato não estava num dia bom. Precisava descansar. Ao acordar a vida seria mesma. Viu gotas vermelhas na sua roupa. Muitas dúvidas. Seria o vinho ou o sangue daquele jovem rapaz? Não importava. Ambos custaram caros a ele essa noite e eram vermelhamente amargos de forma intragável. Chegou em casa. Abriu a porta. Ficou atônito. Atordoado. Pasmo. A vida pode ser cruel com as pessoas. Viu seu filho num vestido longo de traços indianos lindos. Entretanto não pudera aceitar aquele que para ele era um corpo estranho dentro de um vestido de traços indianos lindos. Ignorou o filho. Que não percebeu sua chegada. Procurou sua tesoura. Sua tesoura não era mais verde. A esta altura da vida tudo perdera cor. O preto fúnebre é o único que lhe caia bem. Tornara-se um homem espiritualmente sem vida. E sua tesoura tinha pontas, afiadíssimas pontas. Ainda estava vislumbrado com a beleza do vestido. Pensando como seria sua vida nos dias após aquele. Estava decidido a enfrentar os preconceitos, a intolerância e o que mais viesse. Porém não esperava o que estava por vim. Foram incessantes golpes de tesoura preta de afiadíssimas pontas. Agora seu traje elegante não estava mais com alguns pingos vermelhos. Estava banhado. E não restavam dúvidas. Era sangue. Amargamente intragável de injustiça. Ficou atônito. Atordoado. Pasmo. A vida pode ser cruel com as pessoas. E as pessoas cruéis consigo mesmas e ás vezes umas com as outras.
E ainda Restam dúvidas...

Efferson Mendes, 5 de dezembro de 2013, Fortaleza, Ceará

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